Nem todos os contratos de compra e venda de imóveis na planta podem ser rescindidos. Os chamados distratos vêm sendo vetados pelo Judiciário nos casos em que o compradoroptou pelo financiamento bancário desde o período de construção e, na busca por jurosmais baixos, assinou cláusula prevendo alienação fiduciária – quando o bem fica empropriedade do financiador até o pagamento total da dívida.
A lógica é a de que o imóvel está quitado e no nome do banco. Ao comprador é permitidaa posse, até que termine de pagar todas as parcelas que são devidas. Por isso, para oTribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), não cabe à construtora rescindir os contratosnem ser responsabilizada pela restituição de valores que já tenham sido pagos. Adiscussão, que envolve imóveis do programa Minha Casa, Minha Vida, deve ser entre ocliente e o banco que emprestou o dinheiro.
Havia dúvida e decisões divergentes sobre esse assunto até pouco tempo. Com a crise nosetor imobiliário vieram os milhares de processos de clientes interessados em romper oscontratos de compra de imóveis na planta. Seja porque não tinham mais como pagar,seja por acreditarem que, como os preços baixaram, haviam feito um mau negócio.
Para definir a restituição dos valores aplicava-se, na maioria das vezes, o Código deDefesa do Consumidor (CDC). Os compradores moviam as ações contra as construtoras eincorporadoras e conseguiam ter de volta até 90% do que foi pago. Havia decisões nessesentido tanto aos financiamentos comuns, feitos diretamente com as empresas, comoaos que previam a alienação fiduciária, firmados com os bancos.
“Os juízes entendiam que para o consumidor é tudo uma coisa só. Então, a construtoraera obrigada a rescindir o contrato, devolver o dinheiro e depois, se quisesse reaver oprejuízo, teria que se entender com o banco“, diz o advogado Rodrigo Iaquinta, do BragaNascimento e Zilio Advogados.
Rodrigo Iaquinta viu o jogo virar recentemente, como representante de umaincorporadora em um desses processos. O cliente tinha financiamento com alienaçãofiduciária concedido pela Caixa Econômica Federal e havia ingressado com ação somentecontra a incorporadora. Ele pedia para rescindir a compra do imóvel e ter de volta todasas parcelas pagas.
O caso foi julgado pela 27ª Vara Cível de São Paulo (processo nº1093621-35.2017.8.26.0100). O juiz Vitor Frederico Kümpel determinou a inclusão daCaixa no processo e, por se tratar de instituição federal, mandou que os autos fossemencaminhados para julgamento no Tribunal Regional Federal (TRF).
Na segunda instância também tem sido proferidas decisões pela impossibilidade dosdistratos. Há entendimento na 6ª e na 7ª Câmaras de Direito Privado do Tribunal deJustiça de São Paulo (TJ-SP). Em um dos casos (processo nº 1027397-42.2016.8.26.0071), o consumidor havia conseguido decisão favorável na primeira instância.
Para o relator, o desembargador Rodolfo Pellizari, no entanto, o comprador não teria maiscomo devolver o imóvel porque ele já não era mais o proprietário. “Consta averbado ocontrato de financiamento com alienação fiduciária em garantia, em que o compradortransferiu a propriedade do imóvel ao banco, ficando apenas com a posse“, afirma emseu voto.
O desembargador acrescenta no voto que, para a rescisão ser possível, o compradordeveria primeiro quitar integralmente o contrato com o banco e recuperar a propriedadedo imóvel para então devolvê-la para a vendedora.
Luis Rodrigo Almeida, do escritório Viseu Advogados, entende que só seria possível aaplicação do Código de Defesa do Consumidor a esses casos se não existisse uma leiespecífica para regular a alienação fiduciária. “Mas existe, é a de nº 9.514, de 1997“, diz.“A alienação fiduciária protege o mercado imobiliário como um todo. Ela tem regrasespecíficas, céleres e ocorre de forma extrajudicial, o que faz a taxa de juros ser maisbaixa“, acrescenta.
O advogado chama a atenção, no entanto, que os financiamentos desde o período deobras só são possíveis, junto aos bancos, nas compras referentes ao programa MinhaCasa, Minha Vida. Nos demais são permitidos só depois de emitido o Habite-se. Ou seja,nesses demais casos, como ainda não há envolvimento com o banco, os distratos sãopossíveis e devem ser discutidos diretamente com as incorporadoras e construtoras.
Nos contratos com alienação fiduciária, porém, o banco não aceita o imóvel de volta. Oque pode acontecer é ele tomar o bem se o comprador deixar de pagar. E, nessassituações, o trâmite costuma ser bastante rápido e sem garantias de que o cliente váreceber os valores que já havia pago. “O banco não negocia, ele manda o imóvel paraleilão“, frisa o advogado Marcelo Tapai, sócio do Tapai Advogados.
Se o comprador deixar de pagar três parcelas consecutivas, explica Tapai, o bancoencaminha uma notificação via cartório e o comprador tem 15 dias para pagar todo oatrasado. Se não pagar, é feita a consolidação da propriedade, de forma extrajudicial –também em cartório – e o primeiro leilão ocorre em 30 dias. Se o imóvel não forarrematado, um segundo leilão é marcado para os próximos 30 dias e o imóvel pode servendido pelo valor da dívida (desde que não seja inferior a 60% do valor de avaliação).
Do total arrematado o banco desconta a dívida (valor que faltava para quitar o bem) e ataxa do leiloeiro. O que sobrar, se sobrar, é devolvido ao comprador que deixou de pagar.
Por isso não há garantia de que haverá devolução.
A alienação fiduciária, nesse sistema que envolve os contratos imobiliários, é tema de umrecurso extraordinário (RE 860.631) que teve repercussão geral reconhecida peloSupremo Tribunal Federal (STF) em fevereiro. No caso, que envolve um comprador e aCaixa Econômica Federal, discute-se a constitucionalidade da execução extrajudicial doscontratos.
Uma das alegações é a de que ficam comprometidos o amplo acesso ao contraditório e odireito de defesa. O resultado do julgamento deverá ser replicado pelas instânciasinferiores a todos os casos que tratam do mesmo tema.
Fonte: Valor econômico, legislação & tributos.